Nossa principal matriz energética é a hidrelétrica. Havendo menos chuva, diminui a quantidade de água no reservatório, o que por consequência diminui a pressão da queda que gira as turbinas das usinas, gerando portanto menos eletricidade. Porém, antes de tentar chegar a qualquer conclusão e apontar culpas ou soluções, é preciso fundamentar nossa narrativa explicando a real razão desta situação. Afinal, o que deixou o Brasil à beira de uma crise hídrica histórica?
Irregularidade das chuvas ameaça abastecimento de água, impacta safra e encarece conta de energia no Brasil.
A chegada do inverno no Brasil, época mais seca do ano, pode também trazer dias mais quentes que o habitual para a estação. A combinação agrava a já crítica situação hídrica no país, que vê o volume dos reservatórios afundarem a níveis prévios à crise de 2015.
“Se a situação está grave neste momento é porque o verão, que é chuvoso, não o foi“, afirma José Marengo, climatologista e coordenador-geral de pesquisa e desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Há 91 anos não se via tão pouca água, diz o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE). Os danos não se restringem à geração de eletricidade nas usinas hidrelétricas, que contam atualmente com um volume médio útil de 54%, calculado pelo Operador Nacional do Sistema (ONS).
Na agricultura, o aumento em 7% da área plantada do milho, segundo tipo de grão mais cultivado no país, não foi suficiente para aliviar o peso da seca. A safra deve cair 6% em relação à anterior, com produção estimada em 96,4 milhões, prevê a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) em seu último boletim. Enquanto a pouca chuva preocupa no Sudeste, no Norte a população sofre com a maior cheia do rio Negro em 119 anos. Os dois eventos são considerados extremos climáticos – um cenário que não surpreende cientistas que estudam o tema.
“O que estamos experimentando agora – muita chuva na Amazônia, verões com chuvas abaixo da média no Sudeste – são exemplos de extremos climáticos, que, de certa forma, são consequências de uma variabilidade muito irregular do clima. Uma consequência do aquecimento global“, afirma Marengo.
Desde a Revolução Industrial, a temperatura média do planeta subiu 1°C devido, principalmente, à queima de combustíveis fósseis e à derrubada de florestas tropicais, como a Amazônia. A ciência indica que a crise hídrica atual é uma amostra do que poderá ser mais comum no futuro.
EFEITO NO BOLSO: ENERGIA MAIS CARA E RISCO DE RACIONAMENTO.
Com forte dependência da água para gerar eletricidade, o Brasil pode sofrer mais solavancos em sua economia com a irregularidade das chuvas já no presente.
Juntas, as 162 estruturas que produzem energia hidrelétrica e que estão interligadas pelo ONS têm atualmente o volume útil preocupante de 54%, com situação mais crítica na bacia do rio Paraná. Essa região, que abrange os estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná, está em alerta com alguns reservatórios quase vazios.
A usina de Itumbiara, por exemplo, a maior do sistema Furnas, entre as cidades de Itumbiara (GO) e Araporã (MG), tem apenas 9% do seu volume disponível. O mesmo é observado na usina de Marimbondo, a segunda maior do Furnas, e Água Vermelha, no interior paulista.
Sob pressão, Luiz Carlos Ciocchi, diretor-geral do ONS, tenta afastar o risco de racionamento e afirma que medidas estariam sendo adotadas para que não haja interrupções no abastecimento na estação seca.
“O governo está colocando todas as usinas pra operar. Está adiando paradas para manutenção, maximizando a oferta de energia. Isso inclui a redução da vazão dos rios para que haja energia elétrica suficiente“, avalia Nivalde de Castro, professor e coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lembrando que a política de segurar água nos reservatórios afeta outros setores, como o transporte fluvial, pesca, abastecimento e qualidade de água para comunidades ribeirinhas.
Vinte anos depois da crise do apagão, quando a falta de chuvas e o baixo nível dos reservatórios provocaram blecautes no país, Castro espera que o drama não se repita. “O único elemento em comum com aquela época é que, ao longo do ano, o governo pode ter que adotar medida de restrição de consumo no horário de pico“, pondera.
APAGÃO.
A crise do apagão ocorrida no Brasil entre 1 de julho de 2001 e 19 de fevereiro de 2002, afetou o fornecimento e distribuição de energia elétrica. Com escassez de chuvas ao longo do ano de 2001, o nível de água nos reservatórios das usinas hidrelétricas brasileiras baixou. No início da crise, levantou-se a hipótese de que talvez se tornasse necessário fazer longos cortes forçados de energia elétrica em todo Brasil. Estes cortes forçados, ou blecautes, foram apelidados pela imprensa de “apagões”.
No ano de 2001, quando começaram as interrupções no abastecimento, a energia hidrelétrica era responsável por 95% da matriz brasileira. Atualmente, ela corresponde a 63,5%. Energia eólica vem em segundo lugar, com 11%; seguida pela gerada em usinas a gás, com 8,8%; biomassa (8,3%); óleo e diesel (2,5%); solar (2,5%); carvão (1,8%) e nuclear (1,2%). Para o consumidor, a irregularidade do clima traz uma conta mais cara. Em maio, o regime de tarifa foi para o patamar mais alto, a chamada bandeira vermelha, o que representou uma alta de 5,37% na energia elétrica.
O QUE VEM PELA FRENTE
A crise hídrica atual e seus impactos confirmam os prognósticos do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC), que deve finalizar em breve seu sexto relatório, com a participação de mais de 3 mil cientistas.
“Com as mudanças climáticas, esses eventos extremos, como o que estamos vivenciando agora, vão se tornar mais frequentes e com intensidades maiores“, comenta Samuel Barreto, gerente de água da ONG The Nature Conservancy, fazendo referência ao trabalho do IPCC.
Outro exemplo vem do Pantanal, que teve mais de 30% de sua área afetada pelas queimadas no ano passado. Na região, o último verão, assim como os dois anteriores, foram mais secos que a média, aponta Marengo. “Será que os serviços de combate ao fogo estão preparados para enfrentar mais uma temporada com grande probabilidade de incêndios?“, questiona.
A perda da vegetação nativa, ressalta Barreto, piora a situação. “Nesse contexto, as florestas cumprem um serviço importante. Elas ajudam a reter a água da chuva que infiltra no solo e nos lençóis freáticos. Isso atenua os picos de enchente e de seca“, pontua.
Para Luciano Costa e Rodrigo Gaier, repórteres da Agência Reuters, a crise hídrica no Brasil deve gerar “disputa pela água” e o sucesso nessas tratativas é visto como essencial para garantir o atendimento à demanda em 2021.
Segundo especialistas, a crise hidrológica histórica enfrentada pelo Brasil nos últimos meses passou a gerar preocupações sobre a oferta de energia, e técnicos responsáveis pela operação do sistema elétrico avaliam que evitar um racionamento ou blecautes exigirá uma verdadeira “disputa pela água“.
O Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), liderado pelo Ministério de Minas e Energia, disse após reunião extraordinária na quinta-feira que a escassez de chuvas faz com que seja importante flexibilizar restrições à operação de algumas hidrelétricas, incluindo Jupiá, Porto Primavera e Ilha Solteira, em São Paulo, e Furnas, em Minas Gerais.
Essas medidas, para permitir maior geração de energia ou mais armazenamento em determinadas regiões, precisam ser negociadas com órgãos como a Agência Nacional de Águas (ANA) e o Ibama, por questões ambientais, e muitas vezes com políticos, devido ao turismo na região dos lagos.
O sucesso nessas tratativas é visto como essencial para garantir o atendimento à demanda em 2021, disseram à Reuters duas fontes com conhecimento do assunto: “Racionamento de energia não está no cenário, mas se não acontecer a flexibilização da vazão, não tem jeito“, disse uma das fontes, que falou sob a condição de anonimato devido à sensibilidade do tema. “A situação é preocupante? É. Todos temos que estar preocupados e atentos. Mas é desesperadora? Não, não é, ainda temos a carta na manga que é essa flexibilização da vazão.” Uma segunda fonte foi na mesma linha. “Existe alerta, mas não pânico. Temos recursos desde que sejam flexibilizadas as restrições hidráulicas e as térmicas compareçam. É cedo para falar disso, mas a situação é de total atenção.” A fonte disse ainda que “ANA e Ibama serão fundamentais“, e que também é preciso alguma torcida por chuvas na região Sul. “Estamos ‘na mão’ do Sul e de vencermos as flexibilizações hidráulicas“, afirmou, também sob condição de sigilo.
O racionamento de energia vivenciado pelo Brasil em 2001, que esfriou a economia e atrapalhou planos eleitorais de aliados do então presidente Fernando Henrique Cardoso, tornou discussões sobre o tema praticamente um tabu no Brasil desde então.
Mas o assunto volta ao radar de tempos em tempos, agora, mais do que nunca, depois de o período entre setembro de 2020 e maio de 2021 ter registrado os piores níveis de chuvas em 91 anos de histórico no reservatório das hidrelétricas.
As flexibilizações na operação de usinas que o CMSE busca, no entanto, podem enfrentar alguma resistência por preocupações ambientais ou mesmo políticas, disse à Reuters um importante técnico do setor.
Medidas sobre vazões também poderiam ter efeitos danosos para setores como o de café, importante na área de Furnas.
“Sendo franco, essa questão vai ser muito difícil, é uma pauta antipática. Acho que vai dar briga, sempre deu“, afirmou, ao lembrar que no passado o governo do presidente Jair Bolsonaro costurou acordos com políticos de Minas Gerais para manter um nível mínimo em lagos como Furnas, que fomentam o turismo.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), criticou duramente o ONS, após a divulgação de informações sobre o pedido do CMSE para flexibilizar a operação de usinas incluindo Furnas: “O ONS, vinculado ao Ministério de Minas e Energia, apoderou-se das águas brasileiras para o seu propósito único de geração de energia… a previsão de secar os reservatórios do sistema de Furnas, em Minas Gerais, é inaceitável, ainda mais depois dos acordos feitos com a bancada federal do Estado“, escreveu ele no Twitter.
“Essa política energética sem ideias, que não planeja e não pensa em médio e longo prazo, reduz os níveis de água e sacrifica o abastecimento, o turismo, a navegação, a agropecuária, a piscicultura e o meio ambiente“, atacou.
Procurado, o ONS não respondeu especificamente às afirmações do senador, mas disse que decisões sobre flexibilizações operativas serão tomadas pela ANA e encaminhadas ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), “por se tratarem de importantes iniciativas para manterem a segurança no abastecimento“.
O ONS também disse que “o cenário merece atenção“, mas não vê risco de falta momentânea de oferta, ou déficit de potência, “considerando as medidas necessárias para a segurança e a continuidade do suprimento de energia que foram tomadas pelo CMSE“.
O órgão do setor de energia também destacou que “vem reforçando a gestão de todos os reservatórios” e que trabalha junto ao Ibama e à ANA para “assegurar a governabilidade da operação hidráulica das principais bacias da região Sudeste“.
Na quinta-feira, o CMSE alertou que medidas de flexibilização são necessárias para “mitigar o risco da perda do controle hídrico na bacia do rio Paraná“.
A ANA disse em nota que “está realizando a análise da solicitação do ONS“, sem detalhar.
Já o Ministério de Minas e Energia afirmou que “a situação atual é desafiadora” e que trabalha com foco em “manter o máximo possível de água nos reservatórios” das hidrelétricas.
“O objetivo é garantir que, mesmo com poucas chuvas, seja mantido um volume de água suficiente tanto para geração de energia elétrica quanto para os demais usos da água. Sem um controle adequado das vazões, podem ocorrer impactos a todos os usuários“, afirmou a pasta em nota à Reuters.
As preocupações com o suprimento vêm 20 anos depois do racionamento histórico de 2001, e assim como naquela ocasião também um ano antes de uma eleição, quando geralmente há incentivos à economia em qualquer governo, pontuou a especialista Leontina Pinto, da Engenho Consultoria.
Ela ainda disse que esforços para evitar a qualquer preço uma crise de energia, que incluem o uso em massa de térmicas, mais caras, podem gerar uma pesada conta quando os custos forem repassados à tarifa, o que ocorreu em 2015, após o país ter enfrentado riscos de oferta no ano anterior. “Meu nível de preocupação é muito alto. A gente consegue uma retomada econômica sem energia? Ou com energia a preços estratosféricos?“, questionou ela. “Eu tenho um programa aqui de simulações, eu chamo de racionômetro. Brinco que já está no momento de ‘ligar’ ele de novo.”
Fontes: Reuters Brasil (www.reuters.com/places/brazil); Brasil de Fato (www.brasildefato.com.br)
Escrito por @ehoenen e revisado por @fernandapincinatto